domingo, 20 de fevereiro de 2022

Eu ouço vozes


Eu ouço vozes - por Isac Machado

Desde cedo fui adestrado a não responder caso ouvisse o meu nome sendo chamado por alguma voz desconhecida ou conhecida de alguém que tivesse morrido. Era muito importante não responder, porque o morto ou a morta poderia me levar para sempre. Aquilo me deixava meio paralisado de terror. 

A igreja reforçava as proibições do Velho Testamento de trocar ideia com mortos. As tantas proibições logo me fizeram acreditar que um dedinho de prosa era possível, já que proibir era tão veemente para aquele povo. E assim, no adestramento familiar, nada de responder a vozes. 

Ocorre que ouço vozes. "Com que frequência?" Eu ainda ouço as gargalhadas da Rosi Lacorte e os chamados dela pra gente correr, quando percebia antes de mim, alguma movimentação hostil nas manifestações. Eu ouço a voz da Jane Deluc cantando, me chamando para um café, me chamando de "filho da puta", e pouca gente merecia esse "filho da puta" da Jane. Era honroso. Ouço o som do contrabaixo que tocava, das castanholas. Ouço a gargalhada discreta dela. Como não responder a essas meninas? Ouço a voz do meu pai me recebendo no portão, me abençoando e me perguntando se eu não tinha vergonha na cara de andar com o carro tão sujo. Depois perguntava se queria que ele mesmo levasse e ria. E eu entrava na casa assim, com ele rindo na minha frente, e minha mãe já brigando com ele, mandando ele deixar "de ser besta", que quem andava no carro era eu. Ouço a voz de dona Arciete, minha ex-sogra, cada vez mais frágil, à medida em que o Parkson progredia. Ouço o riso dela, já baixinho, quando chegava ao hospital e a chamava de "companheira sogra". 

Ouço a voz do Ari e a gargalhada interminável dele quando me fazia umas emboscadas escondido em algum corredor da igreja ou no estacionamento e quando eu passava, sempre distraído, aparecia do nada e me atacava com cócegas na barriga ou catucadas nas costelas, e depois explodia em risos. Eu nunca aprendia a me defender desses ataques. E quase sempre ele descobria minhas tentativas de vingança. Como não responder ao Ari? Eu ouço a voz e o riso da Rosemere, lá da Assembleia de Deus de Imbariê, em nossas conversas longas de depois de cultos, sobre tudo. Ouço as gargalhadas e as vozes sempre altas e animadas de minhas ex-cunhadas Nane e Rose. Ouço Raquel e Rita, vizinhas de minha mãe, me chamando na calçada. 

Ouço a voz carinhosa do professor Adauto dando instruções para seus discípulos aprendendo a arte de entalhar madeira. Ouço até a voz de quem sequer chegou a falar, da minha Nathália, que veio apenas avisar que não poderia ficar. "Com que frequência?" "O tempo todo". E de tantas outras pessoas que não foram citadas aqui. 

E não tenho medo de responder. Não respondo é por distração, nunca por medo. Também não costumo responder aos primeiros chamados de vivos. Eu não tenho medo dos meus mortos. Eu vivo a intensidade presente sem tentar apagar meus passados e sem me alienar com possíveis futuros. 

Já não creio que reencontrarei essas pessoas em algum lugar, em alguma dimensão, e nos reconheceremos. Perdi essa fé. Acho que perdi. E não vou reencarnar, por decisão pessoal. Além disso, protestantes não reencarnamos mesmo. Não recebemos essa senha em nosso combo de fé. Não temos acesso a esse serviço. 

Eu também não vou saber como me comportar se morrer aqui e brotar na laje do céu e vir um monte de gente sem corpos me receber ao mesmo tempo. Eu não sei interagir com um monte de gente ao mesmo tempo. Não sei com quem falar primeiro, para quem dar atenção. Eu fico perdido nessas situações. Eu travo. Teria que recombinar essa recepção, um de cada vez, na beira de um riozinho. E nada de branco. O branco me angustia. Espíritos não tem cor. 

Como é que vou reconhecer espiritos? Meu espírito teria pouco cabelo e uma barriga em fase de crescimento que vou reduzir a partir de segunda-feira? Eu só ouço vozes. "O tempo todo". Eu ouvi Brumadinho e ouço Petrópolis. Esse povo que citei e tantas outras pessoas moram em mim. Morarão até que eu também me apague ou seja apagado. Talvez isso seja eternidade. Talvez. 

Eu ouço vozes.

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